A Escola de Atenas e a nossa Escola
( Texto lido no Ato de Fundação do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise. Recife, 6 de Dezembro de 2001)
Paulo Medeiros
Amigos da Psicanálise,
Boa-noite!
Alegramo-nos com a presença de todos vocês hoje aqui de um modo especial, pois se trata de uma celebração para comemorarmos um fato importante em nossa história. Sim, cremos, já fazemos uma história, na medida em que na diacronia da fala, nossos feitos já podem ser narrados ou escritos; feitos considerados por nós importantes para o movimento psicanalítico lacaniano em nossa cidade, para a formação de analistas, nossa e de outros.
Desde o momento em que me foi dada, juntamente com os companheiros Pedro Leonardo e Everaldo Jr., a incumbência dessa fala, uma imagem se me impôs e a comento: uma pintura de Rafaelllo Sanzio (1483-1520), bastante conhecida: A Escola de Atenas. O signo Escola serve de mote.
Aquela pintura retrata uma imagem simbolizando a ciência, mas sobretudo a filosofia enquanto saber eterno, philosophia perennis. Foi pintada a pedido do Papa Julio II, o mesmo que encomendou a estátua de Moisés a Michelangelo comentada por Freud. Seria para decorar sua Biblioteca, na Stanza della Segnatura do Vaticano. Rafael estava com vinte e cinco anos quando a pintou, na mesma época em que Michelangelo estava decorando a Capela Sixtina. Tratava-se de um momento crucial da arte do Renascimento.
Vemos naquele quadro um grande número de filósofos da tradição clássica reunido simultaneamente num mesmo espaço, num grandioso conclave sincrônico. No centro, sobre uma escadaria, estão os dois personagens principais conversando: o de barba branca, assinala o céu, enquanto que o outro, mais jovem, aponta a terra. O primeiro é Platão, com sua filosofia das idéias e dos modelos teóricos, e o segundo é Aristóteles, com sua filosofia das formas e a observação da natureza. Platão o Mestre, e Aristóteles, seu mais fiel discípulo. Platão conduz seu livro Timeu e Aristóteles, sua Ética.
Timeu é um dos diálogos mais difíceis de Platão, na verdade um verdadeiro tratado enciclopédico pretendendo versar sobre todo o conhecimento adquirido por seu autor, abordando a formação do mundo e da alma e do corpo humanos. Tornou-se mais conhecido devido à sua referência ao mito da Atlântida.
A Ética enquanto campo específico da filosofia começou com Aristóteles, e parte dela, a nicomáica, deve ser conhecida de todos os seguidores de Lacan devido à análise feita por ele do ensino de Aristóteles no seu Seminário A ética da psicanálise.
Ao redor daqueles dois pensadores, Rafaello dispôs outros pensadores célebres, co-protagonistas temáticos do quadro. Porém, e isto também nos interessa, além desses protagonistas temáticos, está presente um dos grandes elementos formais da arte renascentista: a Perspectiva. A perspectiva é uma forma de representação que foi elaborada no Quattrocento. As figuras vão se tornando menores, em escala, em função da posição do olhar de quem as contempla, levando-se em conta as distancias relativas dos personagens e dos objetos relacionadas às linhas visuais dos espectadores. Trata-se de pintar o espaço. Assim, o Renascimento apresenta-nos o olhar e a perspectiva antecedendo a abordagem topológica apresentada por Lacan.
É o espaço da Perspectiva, só possível com a Matemática clássica aplicada à arte e à técnica renascentista: a Matemática de Euclides, a Matemática do espaço linear.
Por isso Rafaello coloca Euclides no quadro, situando o autor dos Elementos matemáticos no vértice direito do quadro, abaixado e rodeado por discípulos, usando um quadro e um compasso para demonstrar alguma coisa.
A matemática do espaço euclidiano, amplamente desenvolvida no Renascimento, é uma das chaves do pensamento Moderno, tanto para as ciências naturais como para as ciências humanas e a arte. O espaço matemático é pensado como espaço vazio e considerado um absoluto explicativo, a partir do qual se constrói a realidade, não só pictórica ou artística, senão a realidade da Natureza, ou, em termos teológicos, válidos também no Renascimento, a Criação.
Há, ainda, uma outra personagem importantíssima para a historia da matemática, colocada no vértice oposto do triângulo que compõe o quadro, situado em frente de Euclides: Pitágoras. Está sentado e escreve algo numa tabuleta.
Dessa forma, estamos diante de Pitágoras e de Euclides, os dois matemáticos, situados em cada um dos extremos inferiores da obra e são ponto de partida de duas retas imaginárias da perspectiva traçada por Rafaello, que se aproxima pelo centro da composição - justo onde estão Platão e Aristóteles - para perder-se no horizonte celeste, em fuga para o infinito.
Contudo, durante todo o tempo, o tempo em que refletia e lia sobre aquela obra-prima, da sua importância artística e do que simboliza, a celebração que nos convoca para hoje, a do Ato de Fundação legal de nossa - agora - Escola de Psicanálise, ato que nos submete, submete a todos nós - fundadores e aderentes à Proposição de Lacan conforme a leitura que dela fazemos - ao Outro da Lei, uma indagação se nos impõe: ao mesmo tempo em que valorizamos toda a Cultura representada naquele quadro, ele não nos comporta, apesar de a Psicanálise ser ela também efeito dessa Cultura. A Ciência não está apta a comportar a Psicanálise, na medida em que o Sujeito proposto por Freud e relido por Lacan está excluído da Ciência e das manifestações culturais conforme apresentadas até a descoberta do inconsciente freudiano. Desta forma, ainda que submetidos ao Outro da Lei por este ato que hoje nos reúne, o desejo que o funda permanece desconsiderado por outros domínios do conhecimento, mantendo-se um saber marginal àqueles.
Certamente uma Escola de Psicanálise é também lugar para o Discurso do Mestre e da Universidade, mas seu discurso funda-se sobre o Discurso do Analisante, um Discurso Histérico sobre o desejo. Uma teoria do inconsciente não existe fora da transferência que funda seu dizer e escrever, isto é, o inconsciente só existe numa relação analítica. Neste sentido, só há formação de analistas numa instituição psicanalítica. Outro modelo institucional, acadêmico por exemplo, só poderá trabalhar teoricamente sobre a nossa prática, e a nossa prática está reservada à própria psicanálise e o que dela pudermos elaborar.
Assim, no desejo de mantermo-nos indelevelmente a interrogar-nos sobre tudo o que diga respeito ao campo de nossa prática é que celebramos hoje nosso Ato de Fundação, agradecendo a generosidade da acolhida de todos os convidados que tem nos acompanhado neste percurso.
Recife, 6 de Dezembro de 2001, no Ato de Registro do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise.
Paulo Medeiros