Editorial - Revista Veredas Nº 9 - Dezembro/2003

capa-veredas-7Mantemos, aqui, o mesmo princípio que sempre norteou esse nosso órgão cultural de divulgação que é a REVISTA VEREDAS, qual seja, aquele que faz veicular a intertextualidade em todos os que se vergam sobre o estudo sério, epistêmico, dos textos analisados – o da práxis discursiva – o qual  manifesta uma preocupação incessante com a   inteligibilidade e compreensão dos textos ( o que bem rege as razões de qualquer atividade que se queira responsável em bem operar). É no Seminário “...Ou Pire”, de Lacan, que encontramos as razões que assim nos justificam, e que aqui apresentamos, enquanto incessantes produtores de textos. Lacan afirma:

                                         “  ou pior, em suma, é o que posso sempre fazer.
                                          Basta que o mostre para entrar no coração da
                                          matéria. Mostro-o, em suma, a cada instante.
                                          Para não permanecer nesse sentido que, como
                                          todo sentido – vocês o vêem, claramente, pen-
                                          so – é uma opacidade.”

Esse aí é o nosso lugar. Daí  a razão de termos um compromisso com o discurso autoconsciente que faz da própria linguagem seu agente subversivo, inquiridor. Vejamos, entre todos os Autores aqui inscritos, mostras disso.

Em Sara, a busca para a inteligibilidade da criação dirige-se à “não-palavra” (clariciana) que se inscreve na entrelinha. Na fala, no texto oral, diz ela,  as dificuldades perpassam face o “deslizamento de sentido”. Problematiza  a questão: “A aporia já começa no  título. ‘O’ texto, ‘um’ texto... usaremos o artigo definido ou o indefinido? . Linguagem-objeto, reflexiva, que se quer meta. Eis a questão: “Ou Pire” ou “ou pire”? Então, lembra Virginia Woolf: “Mentiras fluirão de meus lábios, mas talvez possa haver alguma verdade no meio delas; cabe a vocês buscarem a verdade e decidirem se vale a pena conservar alguma porção dela.”

Em Dirce, é à “astúcia da letra”, com  Joyce, que ela se alia para captar “um mais além do que os olhos vêem nos deslizamentos do imaginário de sua criação” ( a dele).   Como diz ela, em Joyce, as palavras “vão ‘astuciosamente’ enveredando por caminhos bifurcados e aproximando-se, por referencial, cada vez mais,  do tema, desvelando, num salto estético e revelador,os múltiplos sentidos do texto”. Nele, “não há metalinguagem”, uma vez que “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar em outro”. ( M. Pêcheux, citado aqui, assim, por Lourival ). Não há sentido engessado em Joyce. Em Joyce, o que há é letra.

Em Dulcinea, vamos encontrar a preocupação com a tessitura do texto como uma escolha para apreender algo que se inscreve por trás do sobrescrito. É na tessitura do dizer que ela tenta apanhar o sentido evanescente que por aí se desvela; nesse campo da fruição estética, ele é colhido na rede significante que a Arte tece. É´por essa razão que ela faz do texto de Raduan Nassar, “Lavoura Arcaica”, um “Convite”: “Um Convite às Belas-Letras”, justificando-se: “ A palavra que daí emerge, a palavra aí colhida, não traz, com certeza, a verdade no modo como a ciência a enuncia;ela carrega a verdade na fantasia que a  linguagem expressa; traz o sentido, na maneira como o evoca; traz à alma o modo   de invocá-la. É palavra-poesia. Palavra cantada. É escrita-música”. Essa é a razão também por que Dulcinea funde, na sua própria escritura, a personagem nassuarina “Ana” com a dançarina “Athiktê”,  personagem do Poeta Valéry. Ambas se inscrevem, pela arte da Dança, nas franjas que o Real, epifanicamente, nos anuncia.

Maria Luiza (Malu), por sua vez, traz-nos um caso clínico , o  de “Adélia”, transformando,por meio dessa nomeação,a pessoa em persona , uma  personagem psicanalítica. Conta: “Seu discurso (se assim, forçadamente, posso chamá-lo) encantou-me.Durante quase dois meses nós nos encontrávamos no pátio do hospital para conversarmos. Ela me contava sua vida.”  E diz adiante: “Revendo seu texto,um aspecto me chamou a atenção: ela vinha sempre em mutismo. Também emudeceu quando encenou o ato que deve (talvez) ter sido o mais trágico de sua história”. E, aqui, então, atendo-nos a nosso fim visado – o da práxis discursiva -  perguntamos: - O que encanta Malu , nesse caso, para que ela o traga até a nós, nessa nossa VII Jornada, como matéria de nossa(s) VEREDAS?  Ela acrescenta: As crises de Adélia traziam-na sempre sem fala. Depois o discurso fluía claríssimo, embora num estilo estranho.” – O que encanta Malu? Insistimos. Ela pergunta: “Que inscrição que não foi cunhada teve que ser atuada para fazer sentido, para ser articulada, para ser inserida em sua história? ”...  É preciso falar, dizer” disso”. O relato de Adélia é canto de sereia que atrai a todos aqueles que sintonizam a existência do Caos, abismo profundo, de onde tudo se origina. É preciso falar: dizer “disso” – mesmo que seja no lugar “ou pior” de dizer.Não é na rede que o homem tece, o lugar que nós nos pomos; é do ponto de onde ela parte que nós nos enredamos, através desse canto livre que sintoniza esses dois mundos. Daí porque vemos, ainda,

Teresinha, sinalizando para a voz que lhe atrai e aprisiona a atenção. Ela colhe: “Eu minto, mas minha voz não mente. Minha voz soa, exatamente, de onde no corpo da alma de uma pessoa se produz a palavra EU.”  (Caetano Veloso)

Adelaide, apresentando-nos a Poesia de Sílvia Plath pela pena psicanalítica de Celine Menghi, porque, nessa Poesia onde a Arte viceja, séria e grave, em trágica Beleza, todas elas vislumbram “o rastro do sujeito no curso do mundo”.

Qual Adelaide Câmara, Pedro Leonardo, em Cortazar, rastreia o sujeito. Que topos, invisivelmente avassalador, define os circunstantes? A casa e o tigre... Um, “fios” do “novelo”, perfazendo o “trevo” – a “possibilidade”; o outro, o dom da reserva – “tigre” corta(z)hiância, de cuja “falta” é-se “gozo”.

Everaldo (Junior), no sonho do analisante, apanhando a metáfora articulada entre a palavra falada e o sonho do Inconsciente, assim: no “ônibus” e no “motorista”, a “Direção do Tratamento” e o tratamento cuidadoso do respeito ao homem: “Você não fala, mas presta atenção ao que eu digo.”

Eugênia, denunciando, na linguagem, a lembrança encobridora, através da qual Osman Lins (aqui, o personagem ) - mesmo no exercício das “ mãos leves e precisas”–   tinha, ao longe, conduzida pelo “vento malfazejo”, as  “petálas” que continuavam “pétalas” e, no “rosto”, “cacos de cristal”, e o “cristal” que permanece.

Paulo, confirmando-nos, por meio de uma escritura despojadamente clara, aliada a uma episteme rigorosa, decorrente do raciocínio argutamente lógico, o seu interesse em falar da “Lei”que instaura o homem em seu ethos – o “Nome-do-Pai”: “ metáfora paterna” para o “Pai morto, Pai amado”.

Carlos, no emprego, também, da linguagem própria à Ciência – conceitual, lógica, discursiva – falando-nos sobre a angústia do homem, compreendido no limite da pulsão e da representação.     

Luciane, buscando na compreensão da linguagem mítica , da linguagem psicanalítica, as razões para o tema do desejo, esse que nos lança para o “enigma da existência” assim, como justifica ela: “Diante do impossível”, a única possibilidade humana: “Perder para ganhar”, ou seja, sermos, constitutivamente, seres de desejo insatisfeito.

Teodora, discorrendo sobre o “discurso que bordeja o Real”, do discurso que é “meio”, o “meio”, que, como explica MacLuhan, é a própria “mensagem”: um “meio” que diz “disso”, da “verdade”, mas, conforme Lacan ensina, que é “um meio-dizer” –“ um meio dizer” face à impossibilidade de dizê–la, devido à “impossibilidade de se representar um significante, de haver um significante que represente aí (na relação) um sujeito para outro significante numa correspondência total da verdade”. É por essa razão, pela precariedade da condição do discurso como “meio”, “meio” que é a própria “mensagem”, “mensagem” manifesta como “meio-dizer”, que Lacan, conforme explica Teodora, fala da necessidade de se fazer o “ desmonte do discurso, na busca da “apreensão do Real.. E é aqui, então, que Teodora, com autoridade de especialista que ocupa valiosa parte de seu tempo na solerte leitura da escritura joyciana, aponta-nos, judiciosamente, esta como modelo dessa desconstrução.

Lúcia,  fazendo a relação “sustentabilidade e narcisismo na cidade contemporânea” – estabelecendo aí uma ponte entre a Arquitetura e a Psicanálise - a fim de confirmar o “espaço público como um dispositivo de dramatização da intersubjetividade”. Aí ela ressalta o valor da “auto-estima” implícita no conceito de “narcisismo”. Diz-nos: “É graças a ela, à auto-estima, indispensável à vida psíquica saudável, que o sujeito é impelido a imprimir, assim, seu valor pessoal, sua capacidade produtiva, sua força criativa, enfim”.

Escobar, mostrando-nos que é na linguagem que se encontra o ethos do homem. Ao articular o tema “ Adolescência é Transgressão” , compreende esta, a “Transgressão”, como uma forma de linguagem: uma linguagem  própria à “Adolescência” – “que coloca o adolescente num lugar singular, diferente, distanciando-o da imagem especular dos pais”. Afirma que a linguagem “Deve ser entendida como uma pergunta insistente”. E acrescenta: “Com seu gesto, o adolescente não está perguntando, ‘Quem sou eu?’ e, sim, ‘o que não é ele?’ (O pai)”. O que encontramos, pois, nessa forma de articular a questão da transgressão com a adolescência, é, sobremaneira, o lugar que Escobar aí confere ao ato transgressor: o do ethos característico do adolescente enquanto linguagem  que o define como tal. É preciso, portanto, fazer a leitura adequada do conceito transgressão. “A transgressão”, como ensina ele, “deve ser entendida como uma confrontação com a palavra paterna, não, necessariamente, uma contravenção social”.

Lourival, no campo específico da teoria lingüiística, fazendo “um aporte da análise de discurso de tradição francesa ao estudo da história regional cuja matéria, de cunho ‘histórico-lingüístico’”, é “constituída pela sociedade recifense do início do século XX”.
Aí ele analisa a “busca imaginária de identidade individual e coletiva, no mundo da América Portuguesa em vias de desestruturação”. Com esse fim, ele vai apontar, nos interstícios dos textos de que se ocupa – por meio de uma “nova forma de leitura” – , para “a materialidade da história no discurso”, remetendo-nos a duas importantes teorias da Análise do Discurso: a do lingüista Jean Dubois e a do filósofo Michel Pêcheux, ambos teorizando “a relação da lingüística com um exterior”. Por esse caminho, afirma Lourival, é que “podemos reconstituir a tensão que marca as relações de poder que dão origem aos sujeitos discursivos”. Uma missão um tanto séria: a mesma que todos nós aqui adotamos – perseverar na proposta para a qual Lacan  remete: mostrar , “a cada instante”, que “ou pior”é o que sempre se pode fazer ,”Para”, como ensina Lacan, “não permanecer nesse sentido que, como todo sentido – vocês o vêem, claramente, penso – é uma opacidade”.

E, ainda, na Errata inserida aqui em nossa(s) VEREDAS, com ela apontamos para o fio condutor que a todos conduz na filia grega (nesse amor ao ser próprio do que é humano) ... fio condutor que oferece o significado que há na pregnância: enreda ao longo do traçado tecido. Belíssimo Poema de nossa Helena Pessoa.